O Pão por Deus é um peditório ritual feito por
crianças, embora antigamente participassem também os pobres, associado às
práticas relacionadas com as refeições cerimoniais do culto dos mortos. Na
Galiza o peditório tem o nome de migalho.
O peditório do Pão por Deus está
associado ao antigo costume que se tinha de oferecer pão, bolos, vinho e outros
alimentos aos defuntos. Era costume "durante o ano, nos domingos e dias
festivos se oferecem por devoção picheis, ou frascos de vinho, e certos pães,
que põe em uma toalha estendida sobre a sepultura do defunto, e uma vela
acesa." Também se colocava pão, vinho e dinheiro no caixão do defunto
para a viagem. No cânon LXIX do II Concílio de Braga do ano 572 proibia-se
que se levassem alimentos à tumba. Os peditórios para as almas realizam-se
ao longo do ano, em janeiro pelos caretos , durante a quaresma canta-se às
almas santas e faz-se um peditório (pedir as janeirinhas, pedir as maias, pedir os reizinhos são peditórios
que tal como os dos caretos se inserem no ciclo dos peditórios rituais que
têm lugar ao longo do ano) como o do de "andador de almas", que pedia
esmolas pelas almas.
Nos Açores, acreditava-se que uma alma podia azedar o pão. Para que tal não
acontecesse, o pão da primeira fornada, "o pão das almas", era
colocado numa cadeira na rua à porta de casa, coberto por um pano, para que a
primeira pessoa que passasse o levasse para si ou desse a alguém necessitado.
Peditório
Em Portugal, no dia 1 de novembro, Dia de Todos os Santos as crianças saem à rua e
juntam-se em pequenos bandos para pedir o pão por Deus (ou o
bolinho) de porta em porta. O dia de Pão
por Deus, ou dia de todos os fiéis defuntos, era o dia em que se repartia
muito pão cozido pelos pobres. Registado no século XV como o dia em que também
se pagava um determinado foro: "Pagardes o dito foro em cada hum ano em dia
de pão por Deos".
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Esta casa cheira a broa,
Aqui mora gente boa.
Esta casa cheira a vinho,
Aqui mora um santinho.
Se não dão doces:
Esta casa cheira a alho
Aqui mora um espantalho.
Esta casa cheira a unto
Aqui mora algum defunto.
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É também costume em algumas regiões os padrinhos
oferecerem um bolo, o Santoro. Já pedir o "santorinho", que
começava nos últimos dias do mês de outubro, era o nome que se dava à tradição
em que crianças sozinhas, ou em grupo, de saco na mão iam de porta em porta
para ganhar doces.
As crianças quando pedem o Pão por
Deus recitam versos e recebem como oferenda: pão, broas, bolos, romãs e frutos secos, nozes, tremoços, amêndoas ou castanhas que colocam
dentro dos seus sacos de pano, de retalhos ou de borlas. Em algumas povoações
da zona centro e estremadura chama-se a este dia o Dia dos Bolinhos ou Dia do
Bolinho. Os bolinhos típicos são especialmente confecionados para este dia,
sendo à base de farinha, erva-doce com mel (noutros locais leva batata doce e
abóbora) e frutos secos como passas e nozes.
São vários os versos para pedir o Pão por Deus:
Ó tia, dá pão por Deus?
Se o não tem Dê-lho Deus!
Se o não tem Dê-lho Deus!
Ou então:
Pão por Deus,
Fiel de Deus,
Bolinho no saco,
Andai com Deus.
Como não é muito aceitável rejeitar o bolinho às crianças, as desculpas eram criativas:
Olha foram-me os ratos ao pote e não me
deixaram farelo nem farelote.
A quem lhes recusa o
pão por Deus roga-se uma praga em verso ou deixa-se uma ameaça enquanto se
fugia em grupo e entre risos
Senão leva com a caneca no focinho!
O termo caneca podia ser substituído por tranca ou cavaca (um pedaço de
lenha).
Na primeira metade do século XX as crianças quando iam pedir o Pão por Deus, acompanhadas por um adulto, levavam uma Coca iluminada:
Pão, pão por deus à mangarola,
encham-me o saco,
e vou-me embora.
Se não ficarem satisfeitos dizem:
O gorgulho gorgulhote,
lhe dê no pote,
e lhe não deixe,
farelo nem farelote.
Que vos deu deus
P'ra repartir
C'os fieis de deus
Pelos defuntos
De vo'meces...
Quando o peditório é infructuoso:
Tranca me dáes
fujo p'rá rua
E seja tudo
P'l'amor de deus
Versos dos Açores
"Nesta mesma cidade de Coimbra, onde hoje [ano de 1963] nos encontramos, é costume andarem grupos de crianças pelas ruas, nos dias 31 de outubro e 1 e 2 de novembro, ao cair da noite, com uma abóbora oca e com buracos recortados a fazer de olhos, nariz e boca, como se fosse uma caveira, e com um coto de vela aceso por dentro, para lhe dar um ar mais macabro."
"Em Coimbra o peditório menciona
«Bolinhos, bolinhós», e o grupo traz uma abóbora esvaziada com dois buracos a
figurarem os olhos de um personagem e uma vela acesa dentro [...]"
As crianças e os adultos que participam nos peditórios representam as almas
dos mortos que «neste dia erram pelo mundo», quando pedem pão para partilhar
com as almas. O Pão por Deus é uma
oferenda que se faz às próprias almas. Em Barqueiros, conselho de Mesão Frio, à meia-noite do dia
1 para 2 de novembro arranjava-se uma mesa com castanhas para os parentes já
falecidos lá irem comer durante a noite “não devendo depois ninguém tocar nessa
comida, porque ela ficava babada dos mortos”.
Na aldeia de Vila Nova de Monsarros, as crianças faziam os "santórios",
recebiam fruta e bolos e cada criança transportava uma abóbora oca com figura
de cara, com uma vela dentro.
Em Roriz não se chama Pão por Deus,
nem bolinhos, nem santoros, a comezaina que se dá aos rapazes no dia de Todos
os Santos ou de Finados. O que os rapazes vão pedir por portas, segundo lá
dizem, é os Fiéis de Deus.
Nos Açores dão-se caspiadas às crianças durante o
peditório, bolos com o formato do topo de uma caveira, claramente um manjar
ritual do culto dos mortos.
Com o passar do tempo, o Pão por
Deus sofreu algumas alterações, os meninos que batem de porta em porta
podem receber dinheiro, rebuçados ou chocolates. Esta atividade é também
realizada nos arredores de Lisboa. Antigamente relembrava a algumas pessoas o
que aconteceu no dia 1 de novembro de 1755, aquando do terramoto de Lisboa, em
que as pessoas que viram todos os seus bens serem destruídos na catástrofe,
tiveram que pedir Pão por Deus nas
localidades que não tinham sofrido danos.
O Pão por Deus é o pão, ou
oferenda, que se dá aos mortos, o Molete ou Samagaio (Sabatina, Raiva da
criança) o pão, ou oferendas que se dá quando uma criança nasce.
Nesta data, em Inglaterra pedia-se o "soul cake" (bolo das almas), que, supõe-se, terá dado
origem à tradição do “trick or treat” nos Estados
Unidos. Na Bretanha equivale ao rito do "bara ann
anaon" ou pão dos mortos.
Património Imaterial Português
«A
progressiva implantação do Halloween em Portugal constitui um exemplo de ameaça
ou risco à continuidade do Pão por Deus
como manifestação do Património Imaterial português, por várias razões. Em
primeiro lugar, substitui os versos tradicionais, manifestações da tradição
oral da comunidade, por expressões orais originárias do Inglês (Doçura ou
travessura!/ “Trick or treat!”).
Em segundo
lugar, introduz neste peditório cerimonial infantil o uso de máscaras e fatos
muito semelhantes às usadas no Carnaval, mas que tradicionalmente eram
totalmente ausentes do Pão por Deus.
Finalmente, e
como bem expressam as alterações do nome da tradição, da forma e conteúdo da
tradição oral, e também o tipo de máscaras que passaram a ser utilizadas pelas
crianças, a introdução do “Halloween” eliminou por completo as conotações
religiosas muito presentes na antiga tradição do Pão por Deus.»
Texto adaptado pela professora Mª José Sousa
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