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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Rui Mário Gonçalves, um Senhor Professor de Literatura e Artes Plásticas na FLL

        Rui Mário Gonçalves: Para Memória Futura,
João Pinharanda

 Este é um pequeno mas intenso depoimento pessoal que desejo se torne transmissível. Redijo-o sem a pretensão académica nem sequer jornalística de enunciar obras publicadas, alinhar cargos exercidos, enumerar exposições realizadas, levantar as polémicas mantidas: sem referir pontos de divergência com algumas das suas escolhas e avaliações críticas, métodos de comunicação historiográfica ou soluções de curadoria.
         O propósito deste texto é orientar, quem sobre a obra de RMG se venha debruçar, para algumas áreas do seu trabalho crítico essenciais na revelação de certas zonas de rutura e conflito na arte portuguesa dos anos de 1950 mas, principalmente dos anos 60. Primeiro, a atenção que teve para com a arte abstrata (geométrica e não-geométrica) contrariando a dominante (neo-)realista da cultura portuguesa. Mas, principalmente, destacar a atenção que prestou ao vasto leque de sensibilidades derivadas do surrealismo português, a partir desses mesmo anos 50 e que, nas duas décadas seguintes, marcadas por outras correntes internacionais, se revelaram em toda a sua vitalidade. Mercê de uma formação que se alimentava de um marxismo, inevitável naqueles anos, e de um conhecimento da psicanálise, também inevitável mas mais raro entre nós, é especialmente importante a atenção que teimosamente dedicou a obras e personalidades como as de Mário Cesariny (e todos os divergentes do Grupo Surrealista de Lisboa), António Areal, Eurico, Charrua, Álvaro Lapa ou Joaquim Bravo, apenas para citar alguns dos nomes que também acolheu nas indispensáveis exposições que organizou na Livraria Buchholz, em Lisboa. Sem nunca colocar em causa a narrativa canónica da historiografia de José-Augusto França (que não dá eco consagratório a muitas destas sensibilidades) ele era, no dizer de um amigo comum, "o único que podia estar de manhã no café com o França e à tarde lanchar com o Cesariny".
         Sem museus e quase sem livros, em plena crise de mercado nas galerias foi com Rui Mário Gonçalves, em longas tardes de sábado, nos cursos livres da Galeria Quadrum em Lisboa, que primeiro aprendi, na segunda metade dos anos 70, os factos e vi as imagens da arte contemporânea nacional e internacional. Nos anos de 1980, divergimos em certas escolhas críticas que viram luz neste mesmo jornal - era o sentido de uma inevitável rutura geracional que importava acentuar então. Em todos os júris ou algumas conferências em que participámos depois (até ao recente Prémio Amadeo de Sousa Cardozo, em Amarante, em 2013) conseguimos sempre encontrar plataformas de intensa troca de ideias e eu, principalmente, de recolha das informações factuais que generosamente disponibilizava. Todos lhe dizíamos que ele nos devia umas "Memórias" mas penso que nunca sentiu necessidade de passar do seu saboroso registo oral para a burocracia da escrita. Uma das urgências maiores que a sua inesperada morte nos exige é a da preservação organização dos seus arquivos, que ele anunciava caóticos mas que, de qualquer maneira, cobrem cerca de 60 anos de história da arte portuguesa.






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