«Começou
como realizador de filmes de animação. Ganha a vida como ilustrador.
Diverte-se a fazer música. E entretanto descobriu-se escritor. Este
'artista faz-tudo' ganhou o Prémio de Conto da Associação Portuguesa de
Escritores.
O primeiro livro
de crescidos que leu, depois da banda desenhada franco-belga e das
aventuras típicas da adolescência, foi um livro de contos de Dostoievski
intitulado O Sonho de Um Homem Homem Ridículo. "Tinha uns 12 anos e
julgava que percebia aquilo. Claro que não percebi todas as implicações,
mas gostei bastante e isso levou-me a ler outros autores russos,
sobretudo contos, de Maximo Gorki e Gogol." Os livros sempre tiveram uma
importância enorme na vida de Afonso Cruz. Ajudou ter a biblioteca do
pai. Ajudou o interesse que sempre teve por filosofia e por culturas
diferentes. Foi com os livros que fez as suas primeiras viagens, pelos
caminhos da imaginação, e foi por causa dos livros, que, já crescido,
pôs a mochila às costas e se tornou um viajante. E hoje é ele próprio
autor - com o nome na capa de livros, seja como ilustrador, seja como
escritor. "É um sonho."
Afonso Cruz nasceu na Figueira da Foz, em
1971. Mudou-se ainda criança para Lisboa e, percebendo "o jeito" que
tinha para desenho, decidiu estudar na Faculdade de Belas-Artes. "Também
queria fazer música, mas sempre me disseram que era duro de ouvido.
Mesmo assim, com 18 anos, comprei uma guitarra e aprendi sozinho. Fui-me
tornando competente não só na guitarra como noutros instrumentos."
Sempre fez parte de bandas com amigos, mas, terminado o curso, o
primeiro emprego surgiu na área da animação. Tem o seu nome associado a
séries infantis, como A Maravilhosa Expedição às Ilhas Encantadas, A
Ilha das Cores, A Rua Sésamo e o O Jardim da Celeste. E chegou mesmo a
realizar filmes seus, com subsídio do Estado, participou em festivais,
teve menções honrosas.
No entanto, para Afonso Cruz, a animação
não era vocação, era um trabalho. "Nunca investi muito nesta carreira.
Era um meio de ganhar dinheiro e poder viajar." Trabalhava seis meses
para viajar outros tantos. "Em dez anos visitei mais de 60 países."
Escolhia um destino, comprava o bilhete de avião e partia sem grandes
planos. Gostou da Síria, encantou-se com o interior do Brasil, recorda o
Gana e a República do Benim, não ficou fascinado com a Índia. "Escolhia
as viagens de acordo com aquilo que lia", conta. A primeira foi à
Bolívia porque queria ter uma experiência com índios nómadas: "Acho que a
grande diferença entre sociedades não é o comunismo e o capitalismo,
nem a religião, mas, acima de tudo, é entre o nomadismo e a
sedentarização, e o que isso implica em termos morais, políticos,
sociais, influencia tudo."
Nesse período, Afonso Cruz foi um pouco
nómada, é verdade. Mas a sedentarização acabaria por acontecer. Com o
nascimento do primeiro filho, iniciou-se uma nova fase ("Ainda viajamos,
mas menos e é diferente"), que correspondeu também ao início da sua
carreira como escritor, à criação de um grupo musical, os Soaked Lamb, à
ascensão da carreira como ilustrador.
Um dia, decidiu, com a
mulher, Maria João, deixar a sua casa na Almirante Reis, em Lisboa, e
procurar um sítio onde tivessem "uma qualidade de vida melhor". Estão há
dois anos no Monte Novo. Estradas vazias, sempre a direito, o campo
alentejano salpicado por poucas casas. Um ar abafado nestes dias de
Julho até chegar quase a Almadafe, perto de Casa Branca, que fica perto
do Vimieiro, que, por sua vez, fica para lá de Arraiolos, antes de
Estremoz. Mudar assim foi um risco. Mas calculado. São freelancers (ela é
designer), sabiam bem o que queriam e não se arrependem. Lisboa fica a
uma hora e meia de distância, "não custa nada". Dentro de casa está mais
fresco. Uma sala enorme, uma chaminé, estantes de livros, o telefone
fixo (a rede de telemóvel não é muito fiável), um amplo espaço de
trabalho com computadores e seus acessórios. Têm até um computador de
reserva. "Não podemos correr o risco de ficar sem computador, seria
trágico." O gato gordo a dormir no tapete, brinquedos espalhados.
Silêncio. Três hectares de terreno, que "está agora um pouco
abandonado". Ele chegou a plantar algumas árvores, transferiu oliveiras,
teve uma horta, mas, até no Alentejo, os dias têm só 24 horas. "Não
tenho tempo. Tenho tido tanto trabalho", diz Afonso. Não é um lamento.
Antes pelo contrário.»
in http://www.dn.pt/gente/interior.aspx?content_id=1614941
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